10 anos atrás, o “Born This Way” mudou minha vida, o mundo e a música pop

Caio Coletti
6 min readMay 23, 2021

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A obra definitiva de Lady Gaga, “Born This Way”, completou 10 anos neste dia 23 de maio. O que se segue é uma meditação pessoal e crítica do legado de um dos discos pop mais importantes da nossa era, uma década depois.

Eu me lembro distintamente do dia em que o meu “Born This Way” chegou, pelo correio. Foi o primeiro álbum físico que eu comprei já na pré-venda, baseado na promessa que os três singles lançados até então (“Born This Way”, “Judas” e “The Edge of Glory”) faziam: um disco dançante de virar a cabeça, cheio de conceitos “secretos” costurados nas letras e na sonoridade.

Passei noites a fio desvendando os clipes e performances de Gaga no caminho até o álbum, estreitando, pela internet, amizades que carrego até hoje. Fiz uma conta de fã no Twitter, onde não usava meu nome real e passava os dias discutindo com outros “little monsters” — algo que nunca tinha feito antes, e nunca mais fiz. Em suma, o “Born This Way”, que já estava destinado a ser um acontecimento pop, se tornaria também um pedaço de arte cujas ramificações na minha vida, no mundo e na música seriam imprevisíveis.

Mas voltando àquele dia em que o meu álbum físico chegou. Estava em casa com amigos, aproveitando uma tarde preguiçosa daquelas que paramos de ter logo depois do fim do ensino médio, e coloquei o CD para tocar assim que o trouxe para dentro depois de pegá-lo do entregador no portão. Eu já tinha ouvido o “Born This Way”, é claro, mas descobrir o sabor dele na dimensão física, ouvi-lo enquanto folheava o encarte, lia os agradecimentos (“this album is for ü”) e sentia a concretude daquele disco o transformou totalmente na minha cabeça.

Também naquele dia eu percebi que o “Born This Way”, e Lady Gaga como um todo (em seu auge, pelo menos), transcendia a bolha de quem ama e normalmente ouve música pop — leia-se especialmente, é claro, o público LGBTQIA+. Entre 2008 e 2010, Gaga recolocou o pop dançante no centro do discurso cultural ocidental, e recolocou o procedimento pop (aquele, construído nas fundações de Andy Warhol e regulamentado por artistas como Madonna, David Bowie, Grace Jones) no imaginário popular.

Por causa dela — por causa de “Paparazzi”, e “Telephone”, e “Alejandro”, e “Born This Way” (o single) — , videoclipes voltaram a ser eventos, e a figura do artista como sensibilidade pop, como agente do discurso cultural, voltou a ser considerada. Ela atribuía importância a cada nota, cada escolha, cada look, e fazia o mundo ouvir, julgar, observar, escrever. Ela contava uma história para o zeitgeist, e o zeitgeist tomava notas. Nas costas de Gaga, embora não só nas dela, foi criado o complexo cultural ocidental contemporâneo de Discurso (com maiúscula, com ™), especialmente discurso online, sobre música pop.

Naquele dia, no meu quarto, meus amigos — heterossexuais, geralmente desinteressados em música pop — quiseram saber tudo sobre o “Born This Way”. Quiseram aprender a coreografia de “Judas” e entender o que o clipe da faixa título significava. Quiseram ouvir o que ela estava falando. Em 2011, todo mundo quis, e ela falou.

O “Born This Way” é, e acho que até os que não gostam muito do disco precisam admitir, um exemplo de auto expressão radical dentro da música. Ele é inconfundivelmente, inflexivelmente uma obra de Lady Gaga. Até por isso, é o ponto de referência fundamental para entendê-la como musicista— da obsessão por fundir referências do pop e do rock ao amor incondicional pela música eletrônica europeia, está tudo aqui, explodido em mil pedacinhos e colado de volta com a energia de quem olha para um abismo artístico e pensa, logo antes de pular: “Isso vai ser divertido”.

O trechinho de ópera no início de “Government Hooker”, a banda de mariachis de “Americano”, a linha de piano radiofônica de “Hair”, a guitarra furiosa de “Electric Chapel”, o solo de saxofone de Clarence Clemons em “The Edge of Glory”, o batidão irrestrito de “Scheiße”, o country rock embriagado de “You and I” — nada aqui é fora dos limites, nada não é pop o bastante para Gaga, não há nada que ela não possa transformar em algo dela.

Essa ideia de auto expressão radical vazou de Gaga, e especificamente do “Born This Way”, para todo o cenário pop ocidental. No ano seguinte, 2012, Lana Del Rey se tornaria um fenômeno com um som que não deveria ser fenômeno, e o mesmo aconteceria com Lorde (que, inclusive, é fã declarada de Gaga) em 2013 e Billie Eilish em 2019. Exemplos óbvios de uma tendência — o pop ocidental hoje é, para o bem e para o mal, um terreno fértil para auto expressão.

Se os horizontes do que entendemos como música pop se alargaram desde 2011, a culpa é, em parte significativa, do “Born This Way”. É verdade que um pouco do sabor do disco é ver como Gaga usa das regras do pop, do próprio molde, para destruí-lo — um procedimento, um “elemento de crime” (como ela mesma descreveu mais tarde), que se perde em um cenário anárquico. Para que quebrar as regras seja prazeroso, elas precisam existir, e o artista precisa reconhecê-las. Não é o que acontece hoje.

A ideia do “Born This Way” como entidade artística, no entanto, não se limita a seu impacto musical. O disco, e a faixa título, também marcaram e viraram símbolo de uma era de abertura à diversidade, e serviram de conforto específico para toda uma geração para quem ainda era importante afirmar, em termos sólidos e politicamente carregados, sua própria identidade.

Na era da fluidez da geração Z, talvez o apego a rótulos do “Born This Way” pareça démodé — e, que fique claro, eu não estou aqui para criticar a forma de ninguém lidar com a sua identidade. No entanto, para a horda de millennials que compôs boa parte dos ouvintes mais fervorosos de Gaga em seu auge, ouvir a especificidade das experiências que ela discutia, e a positividade que ela passava através delas, foi nada menos do que revolucionário.

No matter gay, straight, or bi
Lesbian, transgendered life
I’m on the right track, baby
I was born to survive

A mim não faltam — e tenho certeza que a você, leitor LGBTQIA+, tampouco — histórias de pessoas cujo processo de fazer às pazes com a própria sexualidade foi disparado, empurrado, movido de alguma forma importante pelo “Born This Way”. E não era só sobre o que Gaga falava, ou sobre a música que ela colocava no fundo de suas declarações líricas (em sua tradição rica, o pop é essencialmente uma forma de arte queer). O que fez a diferença foi a comunidade que o disco criou.

É aqui que essa história fica um pouco pessoal. É aqui que falo dos amigos que fiz, enquanto ainda tentava entender o que era fazer amigos na era em que eu vivia, por causa do “Born This Way”. Das pessoas que segui no Twitter, e depois conheci, e que se tornaram partes tão fundamentais da minha vida até hoje — ou, mesmo aquelas das quais me afastei, tiveram um papel crucial na minha história.

Entender minha própria não-heterossexualidade (o caminho até a bissexualidade é outra história, para outro texto) não foi um processo que começou com o “Born This Way”. O desajuste ao padrão hétero sempre existiu em mim, e havia uma certeza íntima disso da qual eu nunca fui capaz de escapar, desde pequeno — é disso, na minha experiência, que pessoas LGBTQIA+ falam quando dizem que “sempre souberam” de sua sexualidade ou identidade de gênero.

Mas o “Born This Way” abriu as portas para que eu conhecesse as pessoas que me levariam, mesmo inconscientemente, até uma mudança de paradigma sobre esse tal desajuste. Que me fariam usá-lo como um distintivo de honra, com o tempo. Me fez conhecer os “subway kids” que “se deleitavam em sua verdade”, ou ao menos estavam no caminho (o mesmo que o meu) para isso. A magia do disco, em um nível muito íntimo, foi que ele me conduziu até as provas vivas das coisas que ele falava em suas letras.

No ano seguinte ao lançamento do “Born This Way”, Lady Gaga e a mãe, Cynthia Germanotta, fundaram uma instituição batizada com o nome do álbum, que trabalha em causas de saúde mental para jovens. Iniciativa nobre, que mostra uma preocupação e um senso de responsabilidade que, com o tempo, se tornaram sinônimo de Gaga.

Sem dúvida, o trabalho da fundação traz um impacto concreto e importante para milhões de jovens por aí, que enfrentam problemas que eu nunca precisei encarar de frente. Para mim, do alto do meu privilégio, um disco foi o bastante. Um disco pop salvou a minha vida, em um sentido figurativo e (quem sabe o que poderia acontecer em outras circunstâncias) até literal.

Eu não sei como seria o meu mundo, o mundo pop e o mundo como um todo, sem o “Born This Way”. Nenhum de nós precisa saber. Ainda bem.

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