“It’s a Sin” não é uma série sobre HIV — é sobre homofobia internalizada
IT’S A SIN (Reino Unido, 2021)
As nossas ficções sobre a crise do HIV/AIDS no Ocidente raramente transcendem um espaço de serviço público, a missão nobre de documentar uma geração perdida para o descaso institucional e histórico, resgatando as memórias e procurando acender a chama de uma indignação atrasada, mas justa. O trunfo de “It’s a Sin” é fazer muito mais do que isso.
Claro que este texto fundamental chega até nós por cortesia de Russell T. Davies, um verdadeiro pioneiro da representatividade LGBTQ+ na televisão, e um roteirista com habilidade inegável para construir arcos de personagem que os revelam como criaturas mais complexas do que o conjuntos de trejeitos inicialmente apresentados para a câmera. As criações de Davies quase sempre nos conquistam, nos enfurecem e nos quebram o coração, exatamente nessa ordem, mas só porque os entendemos tão intimamente quando chegamos ao final.
Este é certamente o caso com Ritchie, o protagonista de “It’s a Sin”. Dotado da presença de espírito e corpo lânguida e efervescente de Olly Alexander, ele é um personagem principal igualmente divertido e frustrante, mas Davies desembaraça os fios que o compõem como pessoa para chegar em uma verdade indivisível e dilacerante: Ritchie é, na verdade, só um homem que se odeia profundamente. E ele não é um artigo raro no mundo que habita.
Eis o truque de mestre de “It’s a Sin”, com toda o seu hedonismo visual e audácia narrativa. Disfarçada de retrato da crise do HIV, a minissérie se revela, na verdade, um estudo tremendamente machucado dos efeitos da vergonha, do senso de pecado e subversão, que esses homens gays internalizaram por todas as suas vivências em um mundo fundamentalmente, intrinsecamente homofóbico — e dos efeitos, dos comportamentos extremos, dos erros gerados por essa vergonha.
E não é que “It’s a Sin” julgue a dedicação de seus protagonistas ao prazer, esteja ele encarnado no sexo, na amizade, no álcool. Ao invés disso, ela pergunta quando, e como, e por quê, esses comportamentos se tornam destrutivos. A culpa, apontam Davies e seus parceiros criativos, é facilmente prescrita, mas os culpados nunca ou raramente têm a visão clara do que fizeram, e do que tiraram daqueles a quem fizeram.
Encarnada principalmente na oposição entre uma Lydia West resoluta e uma Keeley Hawes explosiva, ambas brilhantes em seus papéis, a presença heterossexual em “It’s a Sin” desenha, mais clara do que nunca, a distinção entre aliados e algozes. Na visão de Davies, não existe um meio termo entre as duas coisas — e a obra que ele construiu certamente dificulta que discordemos da sua tese.
9/10