“Joias Brutas” cria (freneticamente) a mitologia de um perdedor

Caio Coletti
2 min readFeb 1, 2021

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JOIAS BRUTAS (Uncut Gems, EUA, 2019)

Os irmãos Safdie nos desafiam a torcer por um tipo de trapaceiro que estamos acostumados a desprezar em “Joias Brutas”. Howie, o personagem de Adam Sandler no filme, não é nenhum Danny Ocean — longe do charme grisalho e engomado, dos ternos bem ajustados de George Clooney na franquia “Onze Homens”, Howie é sujo, um perdedor, “corrupto sem ser encantador” (como diria Oscar Wilde).

Mas ele é também infinitamente comum. É fácil se identificar com suas trocas, penduras, barganhas, apostas, “gambiarras”, tanto as econômicas que realiza em sua loja quanto as emocionais que mantêm sua vida familiar e amorosa (precariamente) viva.

Pode ser que não tenhamos os segredos, ou não pratiquemos as traições e quase-violências de Howie, mas temos a mesma noção que o mundo é uma grande trapaça da qual somos as vítimas, e o mesmo desejo de, um dia, sermos os trapaceiros — mesmo que esse desejo viva só lá no fundo da nossa cabeça, onde o silenciamos e o botamos para dormir.

Os Safdie canalizam esse senso de afinidade em energia, criando um filme que se move com determinação por um ambiente de caos controlado, impecavelmente urbano, registrado na fotografia sombreada e severa de Darius Khondji, e sublinhado pela trilha rascante de Daniel Lopatin.

“Joias Brutas” deposita, até por ter tanta energia, uma carga enorme em seu protagonista: de Adam Sandler não é só exigido um carisma que justifique a aliança de Howie com o espectador, como também a habilidade dearticular o seu desespero, sua angústia essencial de viver com a cabeça cravejada de preocupações, sempre calculando rotas de fuga.

E ele se eleva prontamente diante desse desafio. Por toda a qualidade preguiçosa de sua filmografia cômica, Sandler sabe quando se entregar a um personagem vale a pena. “Joias Brutas” constrói Howie como emblemático, um aviso potente do que há de quase imperceptivelmente malévolo na sociedade em que ele vive (a nossa).

9/10

Onde ver: Netflix.

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Written by Caio Coletti

Jornalista. Repórter do Omelete. Poptimist.

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