“Judas e o Messias Negro” arranca um suspense shakespeariano de linhas apagadas da história

Caio Coletti
2 min readMar 17, 2021

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JUDAS E O MESSIAS NEGRO (Judas and the Black Messiah, EUA, 2021)

Will Berson e Chaka King sabiam que existia uma trama épica, quase shakespeariana, de traição, revolução, opressão, paixão e paranoia escondida na trajetória de Fred Hampton, o líder do Partido dos Panteras Negras que foi morto em uma emboscada policial arranjada por um agente do FBI infiltrado na organização. Era uma história com largos trechos nunca revelados, e com outros que foram reescritos na narrativa corrente (e falsa) da democracia racial norte-americana — mas eles sabiam que ela estava lá.

“Judas e o Messias Negro”, assim, é quase mais operação de garimpo do que filme. Berson e King suam para estruturar o seu script como um thriller criminal, com olhar aguçado para as tensões que subsistem entre brancos e negros nos EUA, e para erigir monumentos multifacetados de seus dois protagonistas, Hampton e o “traidor” Bill O’Neal, extrapolando o resgate histórico para exibir um senso agudo de drama humano.

Na direção, King brilha principalmente nos momentos mais quietos, em que pode explorar a dinâmica entre personagens antagônicos — o seu trabalho, ele parece entender, é nos transportar para o estado mental da figura central de cada cena. Exibindo coordenação impecável com montagem (Kristan Sprague) e trilha-sonora (Craig Harris e Mark Isham), embora por vezes sofra com uma fotografia (Sean Bobbitt) prosaica, o cineasta engaja o espectador neste filme como poucos outros fizeram nos últimos tempos.

Daí, é claro, “Judas e o Messias Negro” também tem pelo menos três performances excepcionais para trazer essa história escondida à luz, em toda a sua glória dramática e importância social. Daniel Kaluuya, iconográfico e expansivo quando Hampton está discursando, encolhe para criar, brilhantemente, um homem discreto e sensível nos momentos privados; ao lado dele, a força e a integridade de Dominique Fishback, uma supernova de atriz desde seu papel em “The Deuce”, são ainda mais valiosas.

Mas é de LaKeith Stanfield que o filme mais exige, e é ele quem mais entrega. Criar um Bill O’Neal em conflito, que conjugue de forma coerente a vítima de um sistema racista e o agente do desmonte revolucionário e histórico, é uma missão hercúlea. Na tensão palpável que conjura em tela, na forma como modula suas posturas e seus olhares para os companheiros de cena, reagindo a eles enquanto mantém a eletricidade nervosa que o faz permanecer no centro do filme, Stanfield faz parecer fácil.

Se “Judas e o Messias Negro” é uma operação de garimpo, a reconstrução histórica da reputação dos Panteras Negras é sem dúvida sua pepita de ouro mais graúda — mas o brilhantismo de seu ator principal, dentro do que ele representa e do que ainda vai fazer na indústria, fica com um segundo lugar muito, muito próximo.

9/10

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Written by Caio Coletti

Jornalista. Repórter do Omelete. Poptimist.

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