“Malcolm & Marie” pode não ser um bom filme, mas foi o filme certo para mim

Caio Coletti
4 min readFeb 23, 2021

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MALCOLM & MARIE (EUA, 2021)

Às vezes, você simplesmente assiste ao filme certo na hora certa.

Eu vi “Malcolm & Marie” em 15 de fevereiro, dez dias depois da entrada do filme no catálogo da Netflix brasileira, e o clique no “play” foi dado com aquele pé atrás de quem ouviu coisas demais (boas ou ruins, o efeito é mais ou menos o mesmo) sobre um pedaço de arte antes de conferi-lo por conta própria. Conforme as primeiras cenas se desenrolavam, procurei o longa prepotente, vazio, irritante, entediante ou inautêntico que me prometeram.

Bom, quer saber? Pode ser que “Malcolm & Marie” seja mesmo tudo isso. Não é difícil identificar cada um desses adjetivos nele. Mas, para mim, ele foi o filme certo na hora certa, e eu não sei se consigo (nem sei de devo) desvincular a minha visão dele da narrativa muito pessoal que ele tocou, em mim, nas suas 1h46.

Porque o filme que Sam Levinson e companhia fizeram, aqui, me atingiu como um tratado cuidadosamente matizado sobre abuso, seus muitos rostos e muitas complicações. A crueldade de dominação e retaliação que compõe a noite épica dos dois personagens, a forma como o roteiro de Levinson evita o absoluto, o certo, o indubitável ao nos mostrar a dinâmica nada saudável de um relacionamento, revelando a intensa angústia psicológica de viver na incerteza, no medo da incompreensão, que compõe qualquer vida, mas especialmente uma vida envolvida em um amor como esse — caramba, tudo isso soou extraordinariamente verdadeiro aos meus ouvidos e pareceu extraordinariamente autêntico aos meus olhos.

Eu ando pensando muito sobre todas essas coisas nos últimos tempos, e o filme fez eco a elas na minha cabeça. Até escolher as palavras do parágrafo acima foi difícil. “Um amor como esse”? Parece errado denominar o que Malcolm e Marie vivem, ao menos na janela limitada que temos deles, como um amor, mas desqualificá-lo como tal, diante do que é observável, também não é certeiro.

Levinson e seus colaboradores, intencionalmente ou não, criaram um relacionamento disfuncional honesto aqui. Cheio de dúvida, à deriva, imaturo, no limbo. Ver que tanta gente foi capaz de observá-lo e tirar absolutos dele me pareceu uma demonstração evidente da diferença na forma como encaramos nossa ficção e nossa realidade.

O discurso cultural do filme, as suas exposições (explosões, eu diria) sobre cinema, indústria, crítica, identidade, existe em ainda outro nível que ressoou comigo intimamente. Há quem acuse “Malcolm & Marie” de apontar a prepotência do discurso de crítica cinematográfica enquanto perpetua a sua própria marca de elitismo cultural — e acho que há alguma justiça nessa acusação, se você olhar para o filme por um certo ângulo.

Para mim, no entanto, ficou cristalino, no arme e desarme de argumentos fátuos sobre cultura, que as mentes criativas de “Malcolm & Marie” não se pretendem como autoridades, juízes do bom e do mau gosto. Ao invés disso, como comentaristas deliciosamente maldosos, querem nos apontar para as contradições entre sério e paródico, entre literatura e circo, entre fatal e inconsequente, que são na verdade a narrativa cultural humana, tecida em obras de todas as mídias por milênios. Uma grande piada… mas tão séria quanto um funeral.

Por isso foi especialmente fácil, para mim, apreciar a forma como Zendaya e John David Washington passeiam espetacularmente entre exageros articulados, surtos teatrais, e emoções expressadas no miúdo, na sutileza. Eles “rimam” com “Malcolm & Marie”, os personagens e o filme, são parte da melodia rocambolesca e contraditória do filme tanto quanto são regentes da orquestra que a toca.

Aqui está uma obra que me tocou profundamente. Na qual eu pensei muito desde que a assisti. Pode ser que eu seja um dos poucos — mesmo se fosse o único, teria sido uma missão cumprida daqueles que a criaram.

9/10

Onde ver: Netflix.

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Written by Caio Coletti

Jornalista. Repórter do Omelete. Poptimist.

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