Meus 15 filmes favoritos de 2024
Se o ano cinematográfico de 2024 me ensinou alguma coisa (como se eu precisasse de um lembrete), é que a excelência pode vir de qualquer lugar. Foi o primeiro ano que compareci ao Festival de Cannes, por exemplo, e no fim das contas só um filme dos que vi na Croisette veio parar nesse top 15 — ele está no número um, é verdade, mas isso não vem ao caso.
Ao invés disso, a minha lista acabou povoada por filmes que chegaram despretensiosamente aos cinemas e streamings brasileiros durante o ano, vindos da cabeça de todo tipo de artista (diretoras de TV britânicas, animadores independentes brasileiros, cineastas veteranos alemães filmando no Japão), e representando todo tipo de subversão, impulso e vitalidade.
É claro que também tem Hollywood aí embaixo, mas notável que o único blockbuster da lista seja uma saga profundamente política sobre imperialismo e poder nuclear, disfarçada de ficção científica. No cinema, vale tudo — e tudo pode ser extraordinário.
15. Pequenas Cartas Obscenas
Onde ver: Disponível para streaming na Max.
Veja Olivia Colman e Jessie Buckley disparando palavrões! A mensagem eminente da campanha de marketing de Pequenas Cartas Obscenas, comédia inspirada no caso real das missivas cheias de profanidades que abalaram uma cidadezinha inglesa nos anos 1920, fazia uma proposta tentadora, é verdade. Mas o filme da diretora Thea Sharrock (Como eu Era Antes de Você), muito também por causa do texto cheio de insight assinado por Jonny Sweet (Together), é muito mais do que a promessa com a qual foi vendido.
De fato, é o elenco coadjuvante excepcional (Anjana Vasan rouba o filme como a detetive que investiga o caso) que ajuda Pequenas Cartas Obscenas a ir além da superfície, mas essas atrizes só conseguem brilhar porque o texto está profundamente interessado nelas, nas imagens e arquétipos que elas evocam, em onde se localizam na intersecção de expectativa e realidade na qual se constrói a feminilidade de cada época. Emerge daqui, muito surpreendentemente, um retrato doído — mas também muito engraçado — dessas intersecções, e das explosões violentas que advém daqueles momentos em que elas são transgredidas.
14. Jardim dos Desejos
Onde ver: Disponível para streaming no Telecine.
Há um paradoxo estranho no cinema de Paul Schrader, que passou os últimos 40 e poucos anos destrinchando na tela grande a psique perturbada de homens solitários tentando fazer às pazes com o mundo contra o qual se revoltaram, e que agora se revolta contra eles. Diante da sobriedade dos temas do Schrader roteirista, o Schrader diretor costuma se confinar a um cinema espartano, de ambientes estéreis e encenações metódicas, pouco afeito à subjetividade visual — e isso é um conflito justamente porque, como cineasta, Schrader é muito melhor quando se entrega à sinestesia, quando abusa das possibilidades da mídia para evocar uma discussão filosófica muito mais sentida do que falada. E é por isso que Jardim dos Desejos é talvez o seu melhor filme até hoje.
Com o cinematógrafo Alexander Dynan (Fé Corrompida) e o compositor Devonté Hynes (ele mesmo, o Blood Orange), Schrader apoia em sensações essa história de um ex-skinhead que vê sua vida na proteção de testemunhas começar a ruir diante da entrada de uma jovem (Quintessa Swindell) como aprendiz no jardim do qual ele cuida. É um texto fascinado pelo conceito cristão de perdão divino e sua aplicação no mundo dos homens, que se traduz em imagens vívidas da natureza com a qual o protagonista convive a fim de balizar a complexidade das relações interpessoais mediadas por seu passado. Schrader não permite que ele fuja de si mesmo, ou que os outros o absolvam, porque sabe que homem nenhum pode fugir ou ser absolvido — mas medita sobre a possibilidade de um caminho adiante mesmo assim.
13. Tuesday: O Último Abraço
Onde ver: Disponível para aluguel e compra no Prime Video, Claro TV+ e Apple TV+.
O grande triunfo de Tuesday: O Último Abraço é nos convencer que uma história de ideias e emoções muitíssimo complexas é, na verdade, absolutamente simples. Está tudo na abordagem da diretora e roteirista Daina Oniunas-Pusic, que faz sua estreia em longas-metragens com a segurança de uma veterana — o seu toque leve é essencial na hora de fugir dos chavões fáceis do dramalhão lúdico de doença terminal, mas também quando vai desenrolando as consequências da mitologia que estabelece para si mesmo em um plano maior. Tuesday é um filme sobre a morte e o fim que usa o dispositivo da fantasia para ilustrar o seu ponto, ao invés de ofuscá-lo ou torná-lo mais confortável.
Recorrendo à mesma coragem cáustica que empresta a suas protagonistas — mãe (Julia Louis-Dreyfus) e filha (Lola Peticrew) tendo que lidar com o câncer terminal desta última, e com a visita de um pássaro místico gigante que se apresenta como a personificação da morte — , Oninunas-Pusic faz um drama fantástico que convence primeiro pela integralidade do universo que constrói, e até pelo uso genioso de um CGI de beleza rara no cinema contemporâneo, para só depois pensar em convencer como “meditação” sobre qualquer coisa. Ele nos chama para caminhar com ele, em vez de nos mostrar o caminho com a condescendência de quem está três passos a frente o tempo todo.
12. Anatomia de uma Queda
Onde ver: Disponível para streaming no Prime Video.
Nunca um artista minou com tanta habilidade a nossa fascinação pelo que não conseguimos ver, ouvir ou saber da vida dos outros quanto Justine Triet o fez em Anatomia de uma Queda. Diante de um mundo obcecado por reality shows e true crime, na ânsia de descobrir o que acontece entre quatro paredes e entender a história de todo mundo muito além do que se apresenta delas para o mundo externo, a cineasta e roteirista francesa fez um filme que, ao mesmo tempo em que condena essa fascinação, também prospera nela sem nenhuma vergonha do sensacionalismo.
Não é a toa que o caso de Sandra (Sandra Hüller) se aproxime tanto daquele radiografado na série documental The Staircase, que tem fascinado fãs de true crime por décadas. Guiada por um impulso imparável de escavar as profundezas da psique de sua protagonista, das complexas mágoas e afeições que guiavam o seu relacionamento com o marido, Triet nos conduz por um caso (crime, investigação, julgamento, repercussão) de reviravoltas tratadas alternadamente com amargor dramático e acidez humorística — mas sempre certo apetite pelo escandaloso que desvela as minúcias mais ambíguas da humanidade.
11. A Paixão Segundo G.H.
Onde ver: Disponível somente em mídia física.
Esticar a escrita absurdamente internalizada de Clarice Lispector em uma mídia visual não é tarefa fácil. Suzana Amaral e seu clássico A Hora da Estrela chegaram lá ao esconder uma linguagem poética marcantemente feminina por baixo de uma elaboração visual espartana, um conto de fadas enfiado no meio de um drama social de ambições realistas — A Paixão Segundo G.H. não tem qualquer truque similar escondido na manga. Na verdade, o filme de Luiz Fernando Carvalho é construído na vontade de traduzir em imagem o que está no papel, em toda a sua forma divagante, sua força expressiva crua, suas tintas autobiográficas e sua pungente localização socioeconômica dentro do contexto brasileiro.
Há quem tenha se incomodado com esse caráter de “audiolivro” da obra de Carvalho, mas o ziguezague retórico que Maria Fernanda Cândido realiza dentro de um apartamento de classe média-alta no Rio de Janeiro dos anos 1960 me pareceu de certa forma hipnotizante. Por trás das câmeras, Carvalho vai adicionando significados a essa espiral de loucura da dondoca G.H., evocando cacoetes de cineastas mulheres que construíram a história do “cinema feminino” — atravessadas cada uma por suas intersecções de raça e classe — exatamente como Lispector construiu a história da “literatura feminina” no Brasil. É uma abordagem sensível, por mais que seja literal, e também vibrantemente cinematográfica para quem fala com fluência a linguagem que ele elege como sua.
10. Meu Amigo Robô
Onde ver: Disponível para streaming na MUBI.
Meu Amigo Robô é um filme sobre relações. Dizer que os dois personagens centrais (um robô e um cachorro) são melhores amigos, colegas de quarto, irmãos ou namorados faz pouca diferença para as preocupações do cineasta espanhol Pablo Berger, que não por acaso escolheu realizar essa adaptação da graphic novel de Sara Varon sem utilizar diálogos. A aposta estilística funciona principalmente para sublinhar o caráter simbólico dos personagens antropomórficos — Meu Amigo Robô não precisa que você os compre como personas reais, mas precisa que você entenda as conexões que eles forjam em alegrias e tragédias compartilhadas. Poder conectar as relações deles com as nossas é o atalho mais rápido para isso.
Se, em qualquer outro filme, essa falta de especificidade poderia ser lida como defeito, aqui ela é virtude. Meu Amigo Robô encarna, em animação de tons e traços gentis, uma miríade de sentimentos espinhosos. É um filme sobre abandono, sobre memória, sobre alienação urbana, sobre os obstáculos de um mundo que parece ser governado de forma que nos obriga à solidão… mas também um mundo onde existe gentileza, existem refúgios construídos nos lugares mais improváveis, existem oportunidades de seguir adiante. São ideias grandes expressadas em uma tela grande, na qual não sobra muito espaço para os detalhes — e não machuca que tudo seja ao som de “September”, é claro.
9. Priscilla
Onde ver: Disponível para streaming na MUBI.
Sofia Coppola nasceu para fazer Priscilla — mas, ainda bem, esperou 20 anos para fazê-lo. A história da esposa de Elvis Presley, contada aqui com base no livro autobiográfico da própria, serpenteia ao redor dos temas e estéticas mais caras à cineasta: o luxo como gaiola, o tédio como emoção definidora do privilégio e indicadora da opressão, as extensões insidiosas dos poderes masculinos e femininos no nosso sistema social. É o que vemos quando a jovem Priscilla (Cailee Spaeny) é cortejada pelo mais velho Elvis (Jacob Elordi), se encanta por ele, se casa e eventualmente se muda para Graceland viver como um bibelô vestido, penteado e postado na cama à espera de um marido controlador e infiel.
Coppola e seus colaboradores partem da ideia esperta de subverter um conto de fadas americano, e uma versão menos amadurecida da diretora provavelmente apoiaria um filme todo nesse truque. Priscilla faz mais. Ele é um pouco filme de fuga, um pouco análise de relacionamento abusivo, um pouco sátira de subúrbio estadunidense, um pouco ideação artística de casa de bonecas. O tempo, mais do que a crítica contemporânea, há de dizer se as obsessões de Coppola atingiram seu ápice natural aqui, ou se ainda há lugares para ir — mas, de uma forma ou de outra, Priscilla é um espetáculo saboroso para quem é fã do cinema dela.
8. Bizarros Peixes das Fossas Abissais
Onde ver: Disponível somente em mídia física.
Dizem que a necessidade é a mãe da invenção. A animação nacional Bizarros Peixes das Fossas Abissais foi realizada inteiramente por um time de três artistas (o diretor Marão e seus parceiros criativos Rosaria e Fernando Miller), num esquema de produção independente que passou por todos os obstáculos característicos do financiamento cinematográfico no Brasil, em meio a um período que incluiu uma pandemia e um governo conservador que congelou nosso desenvolvimento cultural. Necessidade, enfim, foi o que não faltou — mas a invenção que se observa em Bizarros Peixes, milagrosamente, não é uma de atalhos e truques fáceis. De fato, ele é um filme que encanta justamente por sempre se comprometer com suas ideias mais ousadas, mais difíceis.
Ele é, por exemplo, um thriller satírico sobre o caos da urbanidade contemporânea, meio que na veia de Beau Tem Medo (se você trocar Joaquin Phoenix por uma tartaruga que sofre de TOC, e transportá-la para o centro do Rio de Janeiro). É também uma história de super-heróis em tons e traços brasileiros, exibindo uma literalidade humorística e uma estrutura de graphic novel experimental que é marcantemente nossa. E ainda acha tempo para se estender em uma sequência prolongada de brincadeiras com cores e sons, no melhor estilo Fantasia da Disney. Que tudo isso caiba em 1h15, e deixe um gosto tão doce na boca, é nada menos do que um milagre cinematográfico.
7. O Sabor da Vida
Onde ver: Disponível para streaming no Prime Video.
Em um mundo de O Urso e O Menu, a existência de O Sabor da Vida é… bom, saborosa. Enquanto as tramas estadunidenses apoiadas na popularidade inesperada do mundo culinário da alta sociedade se esmeram na sofisticação dos pratos e na bagunça muitas vezes sombria da vida pessoal dos chefs, o filme francês estrelado pelo ex-casal Juliette Binoche e Benoît Magimel é simplesmente sobre comida. “Simplesmente” é modo de dizer, é claro, uma vez que a relação dos dois protagonistas com a comida que fazem juntos, para quem a servem, e como a degustam, faz toda a diferença na narrativa humana em que o diretor e roteirista Anh Hung Tran está interessado.
Mas, ainda assim, O Sabor da Vida é sobre comida. Comida amorosamente fotografada em cores, texturas e temperaturas que parecem saltar da tela, e cuja preparação é montada com a urgência de uma cena de ação — mas a reverência de uma pintura sacra. Comida que, como o próprio personagem principal advoga em certo momento, não deve ter nada de aéreo ou inatingível. Comida para comer, para sustentar e colorir a vida, em abundância que rejeita a vulgaridade detestável de um mundo cada vez mais obcecado com o frugal. Comida que é um prazer elemental, feita e consumida por pessoas que, como todos nós, estão sempre em busca de prazeres elementais. E comida, por fim, que é uma ideia de vida mais resiliente que os nossos corpos, e que sempre vai viver mais do que eles.
6. Ficção Americana
Onde ver: Disponível para streaming no Prime Video.
Ser artista, às vezes, é odiar a arte. Em Ficção Americana, o diretor e roteirista Cord Jefferson mergulha nesse sentimento e sai de lá com uma sentença apropriadamente ambígua: se rebelar contra o estado das coisas pode ser seu ethos na página, mas não pode ser seu ethos na vida. A história sobre um escritor moderadamente bem-sucedido que inventa um pseudônimo propositalmente estereotípico para enganar os colegas que despreza (e fica espantado com o sucesso que esta sua invenção alcança) nada a braçadas largas nas águas do humor satírico, e prospera em uma performance afiada do grande Jeffrey Wright — mas também sabe quando sair do mundo amargo que seu protagonista enxerga, respirar fundo e nos lembrar do que estamos perdendo por nos focarmos tanto nele.
Filmado em tons mudos e montado com a cadência relaxada que combina com sua ambientação (boa parte do filme se passa na casa de praia da família central, em Boston), Ficção Americana tem muito de penetrantemente específico para dizer sobre a experiência negra na contemporaneidade, mas é também “só” mais um daqueles filmes sobre um homem preso nas complexidades e indignidades do seu convívio social. Uma história velha com um verniz novo. Que seu protagonista digladie de forma tão inteligente com esses dilemas, e que o filme ao redor dele brinque tão eloquentemente com metalinguagem para realizar o seu manifesto de resignação, é o que o torna tão especial.
5. Os Rejeitados
Onde ver: Disponível para streaming no Prime Video.
Curioso pensar que Os Rejeitados é apenas o segundo longa-metragem que Alexander Payne dirige a partir de um roteiro que ele não assinou — até porque, nas mãos de David Hemingson, este é um filme que tem pouco da postura politizada que caracteriza muito do trabalho de Payne, um exímio observador das vicissitudes humanas diante das complexidades do viver em sociedade. Os Rejeitados foge da sátira, enfim, mas isso não significa que ele não se posicione como história: contando o Natal de um professor rabugento (Paul Giamatti), um aluno solitário (Dominic Sessa) e uma cozinheira enlutada (Da’Vine Joy Randolph) em um internato no interior dos EUA, este é um filme à moda antiga (mas não retrógado) sobre o valor da honra não vista, que não é cantada do topo das montanhas do privilégio, e que ensina a olhar além delas.
Melhor ainda, é um filme esmerado nos detalhes. Talvez sentindo a leveza de não se preocupar em honrar o próprio texto, Payne faz escolhas inspiradas por trás das câmeras, transformando os cenários severos onde se passam a história em ambientes acolhedores pela especificidade das escolhas de design, das cores da fotografia, dos takes que se demoram nas interações humanas daquele lugar. Nesses ambientes vívidos, os três atores principais encontram espaço para construírem personagens imponentes, críveis nas relações que se transformam durante o filme, mas também em todas as particularidades que são incapazes de transformar dentro de si. Um conto triunfante sobre o fracasso e o que ele tem de digno, Os Rejeitados já nasceu com aura de clássico.
4. Dias Perfeitos
Onde ver: Disponível para streaming na MUBI.
Quem diria que o grande autor alemão Wim Wenders precisava viajar para Tóquio (Japão) a fim de recuperar algo de vital que se perdeu em suas últimas obras? Dias Perfeitos é o filme onde Wenders finalmente encontra um lugar contemporâneo para suas histórias de gentileza, desencontro e divagação, com algo de pungência crítica sobre as vidas e identidades que são deixadas para trás (ou empurradas para baixo do tapete) na marcha alucinante do capitalismo. O faxineiro Hirayama (Koji Yakusho) sem dúvida se encaixa nesse nicho, e Wenders faz bem em acompanhá-lo por rotinas que pouco se transformam, na qual ele acha mil razões para se frustrar e uma mão cheia de razões para apreciar a vida. O desequilíbrio entre uma coisa e outra está aqui, e o filme nunca o nega.
Dias Perfeitos sabe também, no entanto, que no fim das contas perseverar é o que resta para o indivíduo que, solitário como projetado pelos poderosos, é incapaz de mudar o mundo em que se encontra. O filme acha sabor e encanto nas rotinas e na pequenez dos ambientes, encontra momentos de instrospecção na correria obrigatória do dia a dia, porque precisa encontrar. Do alto de seus 79 anos, Wenders não se permite ser um autor esperançoso ou idealista — ele se resigna, como todos nós nos resignamos, a observar e tentar extrair alguma beleza do que vê.
3. Duna: Parte 2
Onde ver: Disponível para streaming na Max.
Longe de mim prescrever cinema como lição de casa, mas… se a chatice de Duna: Parte Um foi o remédio necessário para chegarmos em Duna: Parte Dois, meus cumprimentos ao professor Denis Villeneuve. Após contar uma história e meia (ou ao menos foi assim que pareceu) no primeiro filme adaptado da colossal obra de Frank Herbert, o cineasta canadense voltou para Arrakis a fim de desenhar com pincel fino a ascensão de Paul Atreides (Timothée Chalamet) para o seu papel de relutante messias do povo que sua família e seu império buscaram colonizar desde o princípio. Um colonizador do bem continua sendo um colonizador, afinal.
O mais excitante de Parte Dois é como ele abraça tudo de descentralizado que a obra representa. A ação é mais frequente e mais franca; a introdução alarmante de armas nucleares, em um ponto que parece arbitrário da trama, empurra o comentário social de Duna para um terreno óbvio, que esbarra no kitsch; e o foco em Chani (Zendaya, em atuação brilhantemente doída) como guerreira-amante enganada pelas “boas intenções” de Paul cria uma narrativa mais forte ainda sobre os povos dominados e dominadores dessa extravagante alegoria política criada por Herbert. Esse é o Duna que precisávamos — e, se demorou um pouco para chegar aqui, ouso dizer que está tudo bem.
2. Rivais
Onde ver: Disponível para streaming no Prime Video.
Em seus melhores momentos, Luca Guadagnino faz um cinema que é absurdamente mais vivo do que a dieta usual que Hollywood — ou, a bem dizer, boa parte do mundo — tem provido nos últimos anos. Rivais é talvez o exemplo mais nítido disso, até porque se localiza no mainstream com muito mais afinco do que as obras anteriores do italiano. No papel, o filme já atiça quem está faminto por um cinema mais adulto, e mais original, vindo de Hollywood: um thriller erótico ambientado no mundo do tênis, com subtons bissexuais, sobre dois amigos (Mike Faist e Josh O’Connor) que se apaixonam pela mesma mulher (Zendaya), mas só conseguem realmente sublimar a tensão sexual que existe entre eles dentro das quadras.
Guadagnino e seus colaboradores, no entanto, enterram suas garras nessa ideia e a conduzem para um lugar visualmente surpreendente, que brinca com a linguagem do desejo encarnada nos comerciais de TV e com a obsessão por competitividade e vitória que move a mentalidade estadunidense de tal forma que chega a se infiltrar em sua libido. A personagem de Zendaya pode até dizer que jogar tênis é sobre “a relação” entre os jogadores, mas não há nada mais americano do que transportar essa conexão humana para um contexto em que alguém, sempre, vai sair ganhando (e, portanto, alguém vai sair perdendo). Nós contra eles, contra mim, contra você, contra todos… tudo renderizado em gloriosa câmera lenta e acompanhado pelos sintetizadores de Reznor & Ross, é claro.
1. A Substância
Onde ver: Disponível para streaming na MUBI.
Por falar em cinema vital, Coralie Fargeat certamente mostrou a vitalidade do seu em A Substância, um filme de eloquência aparentemente infindável, e todos os instrumentos para transformar suas provocações em um produto visual de primeira categoria. Ainda que repita alguns dos dispositivos do filme anterior da cineasta, Vingança — que também buscava reapropriar o olhar masculino e a objetificação da mulher no cinema para uma história que denunciava sua posição fragilizada na sociedade e se deliciava com a fúria que advinha dela — a ficção científica ágil (apesar das 2h20, tudo parece acontecer em um regime de economia admirável) e bem resolvida de A Substância o faz com muito mais músculo, tomando muito mais espaço, e com muito mais vontade.
Daí escolhas como a de escalar Demi Moore no papel da ex-estrela Elizabeth Sparkle, em uma performance de linguagem corporal extraordinária que também dobra como comentário sobre a forma como Hollywood a glorificou pelo corpo e a deixou de lado quando ele parou de representar o ideal masculino. Daí também a coragem de emular, meio em tom de palhaço travesso, clássicos do terror como O Iluminado, Psicose e Carrie — A Estranha, sublinhando a história masculina do gênero só para tentar construir, em cima de uma linguagem que não é sua (mas pode ser, agora que foi roubada), um horror feminino de ousadia e impulso iconográfico que rivalizem com ele.
A Substância parece nos desafiar, o tempo todo, a dizer que “não se fazem mais filmes como antigamente”, a postular que não se criam mais imagens, que tudo é cópia e que cópia não tem valor. Tudo isso, é claro, enquanto é a prova viva do contrário. Faz parte da provocação, da forma como Fargeat joga o jogo do espectador só para vencê-lo dentro dele — e nunca foi tão legal ser derrotado.