Na rede com um livro na mão: minha vida como leitor — Capítulo 3

Caio Coletti
3 min readFeb 28, 2021

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Veja o capítulo 1 desta antologia aqui, e o capítulo 2 aqui.

Crédito onde ele é devido: a humilde coleção de lembranças a seguir é inspirada por um dos meus textos preferidos de todos os tempos, Under the Covers with a Flashlight: Our Lives as Readers, do Emmet Asher-Perrin. Como o autor, eu tentei nesta série traçar um panorama da minha vida através dos livros que eu li, e aconselho:

“Da próxima vez que você tiver um acesso de nostalgia, não tire o velho álbum de fotos da gaveta. Vá até sua estante, e veja o que aparece”

III

Eleanor Vance se encaminhava para Hill House enquanto eu, também, ganhava um novo lar. “A Assombração da Casa da Colina” foi o primeiro livro que eu comecei em São Paulo, capital, depois de ter me mudado da cidade no interior onde havia morado toda a minha vida.

Como Eleanor, eu saí de casa talvez um pouco tarde demais para as convenções sociais, aos 26 anos; como para Eleanor, o prospecto de construir uma nova vida era para mim objeto de fascinação, excitação e terror.

“Voar solo” pela primeira vez, sair da casa dos pais para estruturar qualquer que seja a nova fase para a qual cada um parte quando faz isso, é um ritual que sempre me pareceu infestado de sensações de ansiedade. A insegurança econômica, emocional, até cotidiana, que é intrínseca da vida adulta, vive desde então no fundo da minha cabeça como um monstro, pronto para atacar a qualquer momento.

E, ao mesmo tempo, também existe nesse período uma jubilosa apreciação da liberdade. Talvez por isso as primeiras páginas do livro de Shirley Jackson tenham me tocado tanto mais do que qualquer outra parte dele—foi deliciosamente familiar, e unicamente terapêutico, estar na cabeça de Eleanor enquanto ela se deleitava na pura possibilidade de imergir em um mundo onde era uma agente própria, sorrindo para si mesma da oportunidade de decidir, espontaneamente, parar o carro em um restaurante e interagir com uma família estranha.

A Hill House que aguardava Eleanor no fim de sua viagem sem dúvida carregava mais fantasmas do que o meu apartamento no centro de São Paulo, mas uma magia da leitura (da leitura de horror, especificamente) que eu descobri com “A Assombração na Casa da Colina” foi aquela que permite que escritores deem forma, corpo, realidade, a medos e potências psíquicas que só existem em um plano abstrato para nós, aqui, vivendo no mundo “real”.

Forma, corpo, realidade, através da fantasia. Um mundo de mentira onde a verdade do mundo de verdade é mais verdade do que nele. Que belo ofício, o de criar — dando concretude a tudo aquilo que teima em se desmanchar e escorrer pelas nossas mãos.

“Poderia andar até ficar exausta, caçando borboletas ou seguindo um riacho, e chegar ao cair da tarde à cabana de algum cortador de lenha que lhe ofereceria abrigo; poderia ficar para sempre em East Barrington ou Desmond ou na aldeia de Berk; poderia também jamais deixar a estrada e continuar rodando, rodando até que as rodas do carro estivessem completamente gastas e tivesse chegado ao fim do mundo.”

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Caio Coletti
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Written by Caio Coletti

Jornalista. Repórter do Omelete. Poptimist.

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