Na rede com um livro na mão: minha vida como leitor — Capítulo 1
Crédito onde ele é devido: a humilde coleção de lembranças a seguir é inspirada por um dos meus textos preferidos de todos os tempos, Under the Covers with a Flashlight: Our Lives as Readers, do Emmet Asher-Perrin. Como o autor, eu tentei nesta série traçar um panorama da minha vida através dos livros que eu li, e aconselho:
“Da próxima vez que você tiver um acesso de nostalgia, não tire o velho álbum de fotos da gaveta. Vá até sua estante, e veja o que aparece”
I
Eu não me lembro quantos anos tinha quando li O Caso de Amor de Laurel e Hardy, de Ray Bradbury, pela primeira vez. Lembro que estava deitado na rede, no quintal da minha casa, com aquele que é até hoje o meu livro preferido, a coleção de contos O Viajante do Tempo, nas mãos.
Colhendo-o na estante, eu me lembro como as páginas amareladas dele cheiram não a mofo, exatamente, mas àquele odor amadeirado que sai dos livros velhos bem cuidados. O Viajante do Tempo não era meu, era do meu pai.
A edição marca 1988, mas não tenho certeza se foi naquele ano que meu pai comprou o livro, ou se o achou em algum sebo muito tempo depois. Sei que ele faz parte da pequena coleção de volumes dos meus pais desde que eu me conheço por gente — e eu digo pequena com olhos adultos, porque para um garoto aqueles livros eram inalcançáveis, um mundo diferente de significado ao qual eu não tinha acesso.
E eu queria ter este acesso. Desde que os gibis da Turma da Mônica e a primeira edição surrada de Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (um dia falo dela) passaram pelas minhas mãos, as ficções científicas e dramas na estante dos meus pais se tornaram tentadores. Eu não sei se eu decidi que estava maduro o bastante para lê-los, ou se eles decidiram — nem sei porquê.
Sei que, com O Viajante do Tempo em minhas mãos, a tarde em que alcancei o seu sétimo conto, O Caso de Amor de Laurel e Hardy, foi a tarde que eu soube que nunca deixaria de ler. Lembro do tecido áspero da rede embaixo das minhas costas. Lembro do sol tímido que, se infiltrando pela fresta entre o teto da minha casa e o muro da fábrica ao lado, quase me atingia onde estava deitado. E lembro da magia de ler aquelas palavras.
Bradbury tinha algo que eu nunca encontrei em nenhum outro escritor. Ele conjurava, através das linhas, imagens que já vinham com memória afetiva, com significado nostálgico. É como se você já amasse o que ele lhe descreve antes dele descrevê-lo, simplesmente porque ele já ama. Isso sempre derrubou minhas defesas, meus cinismos, minhas pretensões de crítico — quando leio Bradbury, sou todo coração.
Em O Caso de Amor de Laurel e Hardy, ele conta a história de amantes que são primeiramente unidos por sua paixão pelos curtas d’O Gordo e O Magro. Eu não sabia quem eram O Gordo e O Magro na época, ou ao menos não além de uma maneira superficial de ícones culturais, mas eu não precisava saber. Bradbury sabia. A magia de um bom contador de histórias é que ele se basta em si, mesmo que se inspire ou ref(v)erencie algum outro.
Laurel e Hardy me deixaram em lágrimas naquela tarde. Eu acho que nunca havia chorado com um pedaço de arte antes. Lembro de fechar o livro de supetão ao final do conto e suspirar longamente, enxugando os olhos rápido com a mão, meio envergonhado (não usava óculos naquela época). Lembro que ouvir os sons da tarde na cidade do interior onde eu morava, dos pardais piando ao farfalhar das folhas, de repente adquiriu um novo significado, se tornou mais especial.
Aprendi ali que a ficção é vida ao quadrado, uma infecção imparável que a realça e a transforma. Aprendi que a boa ficção é tão real quanto a realidade.
Lembro que meu pai, o dono original do livro que eu estava lendo, estava trabalhando em algo no quintal naquela tarde. Talvez fosse um móvel novo que precisava ser montado, ou as plantas que precisavam ser regadas ou podadas. Ele não viu meu choro, e nem me lembro se conversamos alguma vez sobre Laurel e Hardy, e o que aquele livro significou para mim.
Hoje, penso na enormidade das decisões e influências que um pai ou mãe tem sobre um filho. No quão parte de mim é a paixão do meu pai pelos livros, o quanto só vê-los na estante, poucos como eram, me formou como pessoa. Que aterrorizante responsabilidade, que inconvertível brincadeira.
Ray Bradbury morreu em 5 de junho de 2012, anos depois de eu ler O Caso de Amor de Laurel e Hardy, e poucos meses depois do meu pai. Manter O Viajante do Tempo na minha prateleira, reler o meu conto preferido de vez em quando, se tornou uma terapia necessária.
As coisas que um pedaço de papel impresso com tinta pode representar…
“Ele girou a gravata para ela. Ela puxou o cabelo para cima, para ele”