Na rede com um livro na mão: minha vida como leitor — Capítulo 2
Veja o capítulo 1 desta antologia aqui.
Crédito onde ele é devido: a humilde coleção de lembranças a seguir é inspirada por um dos meus textos preferidos de todos os tempos, Under the Covers with a Flashlight: Our Lives as Readers, do Emmet Asher-Perrin. Como o autor, eu tentei nesta série traçar um panorama da minha vida através dos livros que eu li, e aconselho:
“Da próxima vez que você tiver um acesso de nostalgia, não tire o velho álbum de fotos da gaveta. Vá até sua estante, e veja o que aparece”
II
Eu me lembro exatamente de quantos anos tinha quando li Mutações, de Liv Ullmann, pela primeira vez: 18. Até hoje, pensar nesse livro me leva de volta à cadeira desconfortável na sala de espera da autoescola, esperando a hora da minha aula enquanto me debruçava sobre as páginas amareladas, as mãos suando contra a cobertura de plástico da capa.
Eu comprei minha cópia de Mutações em um sebo em Jundiaí, interior de São Paulo, quando fui para lá com a minha família (não me lembro para quê). Obcecado por cinema como já era, o nome da grande atriz de clássicos europeus me chamou a atenção, uma imagem em preto e branco de seu rosto, meio envolvido por sombras, na capa.
Se O Viajante do Tempo fez com que eu soubesse que nunca deixaria de ler, Mutações abriu meus olhos para a leitura como aprendizado de vida. A escrita de Ullmann tem uma clareza de direção que me fez perceber o quanto as linhas no papel são capazes de nos abrir não só para os sonhos, mas para a realidade das pessoas nelas.
É verdade que esta foi a primeira biografia (“auto” ou não) que eu li — até então, vivia me enterrando em mundos de ficção científica e fantasia, o que eu ainda sou conhecido por fazer, com ou sem um livro nas mãos, até hoje. Mas que acaso perfeito que ela tenha sido justamente Mutações, com suas máximas profundamente meditadas antes de colocadas no papel, suas impressões fortes de cenas da vida real de uma mulher que eu só conhecia (e nem tanto, ainda) na tela, onde ela fingia ser outras.
Casamento, morte, pertencimento, perdão, desapontamento, envelhecimento, angústia. Em seu livro, Ullmann passeia por sentimentos muito mais do que por temas, deixando o tom de “fofoca” de outras autobiografias de lado — e entregando o que o meu eu de 18 anos precisava no processo.
Aquele não foi só o ano da morte do meu pai, mas um ano de muitas pressões adicionadas ao luto. Eu sempre achei grotesco o que se empurra no colo das pessoas quando elas completam 18 anos, como se fosse um portal mágico para a maturidade. Fazer faculdade, cumprir ou “escapar” do serviço militar, tirar carta de motorista, entrar no mercado de trabalho, tomar um porre épico “agora que pode”… tudo conspira com a ideia geral de que somos “adultos” (para o governo, para os nossos pais, para nós mesmos).
Eu não sabia de nada aos 18. Nada sobre mim, nada sobre os outros, nada sobre responsabilidade, nada sobre o mundo. E não é que Mutações tenha me ensinado quem eu sou — mas me confortou ao mostrar que era tudo um processo de descoberta, que a incerteza nunca acabaria, que aquilo que aprendemos não é nada perto do que continuamos ignorando (e errando).
“Ninguém é dono de ninguém. Juntos, temos um ao outro, a natureza e o tempo. É bastante simples.”