“Nomadland” olha para um sistema falido e apresenta uma (bela, mas dura) alternativa

Caio Coletti
3 min readFeb 13, 2021

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NOMADLAND (EUA/Alemanha, 2020)

“Nomadland” é um tipo diferente de “filme social”. O seu assunto é seríssimo: a situação daqueles que se veem em desalento no capitalismo contemporâneo, descartados ou explorados por corporações, privados de sua independência pelo sistema, especialmente na fase da vida em que deveriam estar colhendo o fruto de seus trabalhos.

E o script, assinado pela também diretora Chloé Zhao e adaptado do livro de Jessica Bruder, demonstra profundo entendimento da situação que retrata. Mas os insights de “Nomadland”, o alarme que ele está tentando soar, nunca ganha precedência à sua solidariedade com aqueles que estão diante das câmeras (quase todos interpretando versões de si mesmos). Falo, aliás, de solidariedade de verdade, do tipo que humaniza e respeita o outro, e não o transforma em objeto de pena.

Zhao nunca permite que seu filme seja um espetáculo de miséria — pelo contrário: com o diretor de fotografia Joshua James Richards, ela equilibra “Nomadland” entre os tons claros, abertos e calorosos das espetaculares vistas que os personagens são capazes de atravessar por causa do seu estilo de vida peregrino; e as imagens escuras, claustrofóbicas e frias do corporativismo ao qual se submetem para ganhar a vida e da realidade inegavelmente dura de viver em uma van.

Também no controle da edição, Zhao é capaz de dosar essas realidades diferentes, mas não excludentes, ao seu bel prazer — um trabalho que ela claramente faz com tanta precisão quanto sentimento. A música de Ludovico Einaudi também reflete essa dualidade: viajando entre tons etéreos e terrestres, entre tragédia e simples contemplação, ela segura o tom dramático do filme no volume certo.

Enquanto isso, Frances McDormand registra uma performance que nega recentes e equivocadas avaliações de seu trabalho como uma repetição do mesmo tipo em filmes diferentes. Sua Fran existe em um universo emocional desprovido de amargura, ao contrário da mulher que vimos em “Três Anúncios Para Um Crime” — há melancolia e luto nela, sem dúvida, mas há também uma certa qualidade indomável, um amor pela liberdade que a transforma muito menos em um ícone, e muito mais em um ser humano.

É notável que McDormand nunca soa falsa em meio às renderizações belíssimas de si mesmos que os “atores” coadjuvantes de “Nomadland” fazem (Swankie é, pessoalmente, uma personagem inesquecível). Poucas atrizes, se é que há alguma, seriam capazes de articular uma personagem com tanta naturalidade sem confiar exageradamente no carisma e deixar o drama de lado.

O resultado de tudo isso é que “Nomadland” se mostra um filme plástica e tematicamente deslumbrante, mesmo que nunca descambe para o algo de artificial que é comum ao que se aclama como “bom cinema” nos meios acadêmicos; e um filme tematicamente ressonante, sem perder a prerrogativa de ser integralmente humano.

Sua “mensagem” não é simples. Enquanto condena o sistema que colocou os seus personagens na situação em que estão, e não deixa de apontar exatamente quem são os maiores interessados em perpetuar esse sistema, “Nomadland” também mostra um grupo de seres humanos se adaptando a ele, e indicando um caminho diferente de sociedade, de existência. Cabe a nós ver, escutar e (se formos corajosos o bastante para isso) entender.

10/10

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Written by Caio Coletti

Jornalista. Repórter do Omelete. Poptimist.

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