“Veneno” mudou a história da TV, tenham os EUA percebido ou não
VENENO (Espanha, 2020)
Não há nada como “Veneno” na TV, e certamente não há nada como “Veneno” na TV norte-americana.
Se “Pose” trouxe à televisão a experiência transgênero em um drama sério e generoso com suas personagens, a espanhola “Veneno” introduz uma joie de vivre ao panorama trans da telinha, um despudor que se estende não só à sexualidade e à vulgaridade (no melhor dos sentidos!) de suas protagonistas, como também à construção visual, à mistura de gêneros e convenções cinematográficas, ao alegre apagamento da linha entre realismo e fantasia que ela opera, como série.
“Veneno” é colorida e glamorosa, sim, mas é também musical de uma forma que eu nunca vi uma série ser. Não que haja (muitos, ao menos) momentos de música nos seus oito episódios, mas é inegável que percorrem-nos, todos, uma linha comum de musicalidade intensa, traduzida na montagem e na harmonia entre fotografia e design de produção — e todos os trabalhos técnicos parecem coesos, partes de uma corrente única, apesar de muitos profissionais terem trabalhado neles em diferentes episódios.
Conhecer a história de vitória e tragédia de Cristina (chamada La Veneno), entrelaçada com as muito mais modernas angústias de sua biógrafa Valeria, é um exercício de ritmo que os criadores Javier Ambrossi e Javier Calvo coordenam à perfeição. As idas e vindas no tempo, ao ajuste fino da temática de cada capítulo, desabrocham em uma história vibrante, que vale a pena conhecer tanto pelo que fala em si (e sobre si), quanto pelo que fala muito além de si.
“Veneno” faz reparação histórica com inteligência — vide a decisão lindíssima de escalar Paca La Piraña para interpretar a si mesma, em uma performance coadjuvante inesquecível, de peso emocional enorme. Olhando para o passado, indicia a mídia pela forma como explorou a protagonista e enxerga-a, ao mesmo tempo, como parte de uma engrenagem de desvalorização e desmande psicológico que continua girando ainda hoje.
A ousadia tonal da televisão espanhola não é novidade para quem acompanha as muitas séries que explodiram de lá nos últimos anos, mas “Veneno” deixa aquela sensação de que um passo além foi dado. Com certeza vai demorar muito para a indústria norte-americana absorvê-la, mas essa é uma série que mudou a forma como olhamos para a TV.
10/10